Friday, November 24, 2006

De soslaio

De soslaio duas pétalas cresceram, duas penas apareceram, houve quem partisse e no mesmo comboio aqui chegasse. Foi como num olhar que algures tivesse imaginado, um sorriso canoro de duas lágrimas que não despontaram, gotas de água que se pairam num oceano de índico e almíscar. Um ar que se povoa de côco e cânticos, uma ilha distante de budas esguios, pés descalços que sonham estar longe dos sapatos que se livraram, agora estará na casa que sempre se lembrou. Viver de um olhar e no bater de um instante, despedir. De soslaio se reina num céu de possibilidades, de soslaio uma flor liberta-se e um anjo voa.

Sunday, November 12, 2006

Uma questão de nome

O meu nome tem um "y" algures, belo decoro gráfico, tão exótico nestes dias, que encanta qual serpente, como um simples caracter faz uma história, como aquece corações e desperta sentimentos, como move vontades e tudo chega em troca de um reconhecimento de amizade. O meu nome tornou-me no que sou e aceito-o porque me agrada, no fundo basta-me vestir bem e usar do meu nome e tudo para mim está aberto, pois tem algo que toca.
O meu nome encantou-me, torneou cada meu pensamento, cada minha acção, respirei cada letra e assim nasceram braços e pernas, e assim percorri o mundo nas asas do meu nome. Na minha vaidade deixei o bilhete de identidade em casa, confiante que o meu nome era tom de pele e olhar... esqueci-me que não me aceitavam o cartão de crédito, que não me deixavam pagar com cheque, que me barraram a entrada da discoteca e finalmente a policia perguntou-me quem eu era!
Sem o meu nome nada sou.

(ficção)

Wednesday, November 08, 2006

E no fim

De corpo leve e alma lavada percorreu o pouco caminho que já faltava para a Madalena, tinha agora à sua frente o portal neo-manuelino, convidativo ao cumprimento de uma velha promessa que fizera e que o tempo, que vai da juventude à maturidade, deixou esquecer. Não interessava já que fosse uma promessa a Cibeles, era agora a Maria Madalena que ele se curvava, a talha a que Machado de Castro imprimira devoção era a acha que precisava para reacender o peito feito cinzas.
Ajoelhou-se, compreendeu a humildade, a entrega, a súlplica, todos os homens e mulheres, de talha, feitos santos, adquiriram a vida de um tempo cuja naturalidade era interior e não reflexo de uma marca. Entregou-se e para consumar a promessa...

Tocou o despertador. Sofia, ainda envolta no perfume onírico da noite deslizou a mão e parou a melodia que Franz Peter desenvolvia canoramente num lieder. Sentou-se na cama, ainda de luz apagada, toda a história de uma parte de vida passou-lhe numa noite, que estranho era viver a pele de outrém, provavelmente efeitos de uma má digestão. Acendeu a luz, fez combinações de roupa durante quinze indecisos minutos e após um conforto de colar certo partiu para o duche. Pensava no dia de trabalho que tinha pela frente, o sonho ia-se desvanecendo, onde ia tomar café à noite, o sonho ia-se esquecendo, e por fim que dormiria novamente para um fim-de-semana de tanta-coisa-a-fazer.
Algures alguém cumpriu uma promessa, quem viveu e quem sonhou? Sofia nunca pensou nisso e num bom toque de perfume a mais vaga recordação foi-se como uma maré que fugiu.

Monday, November 06, 2006

Decisão

O duche tinha agora outro sabor e propósito, dez minutos chegaram para uma higiene completa, ao fundo um schubertiano "Im Abendrot" que preenchia o ar na voz de von Otter, tudo fazia sentido, tudo tinha uma direcção e um propósito, a gillette que suave e firmemente deslizava pelo rosto marcado não deixava qualquer golpe incauto, tudo era certeza. Pela primeira vez, desde o tempo que se lembra, vestiu o que procurou, deitou os ténis no lixo e fez-se à rua de olhar decidido. Schubert acompanhou-o na sua jornada, uma melodia que se recusara ouvir desde o dia em que perdera o diapasão do seu peito.
Agora sim, procurava, algo de etéreo que perdurava na sua mente, tal nevoeiro que deixava seus ouvidos sem ver e seus olhos sem sentir, desvaneciam-se os enganos, os falsos motivos, todos os pensamentos alheados. Aqui e ali, uma lágrima despontava e caía desprendida da posse de seu dono, tudo passava e o passado era maresia de quarto-minguante. Pensava, deixava-se pensar mas já não se lembrava como tudo acontecera, como se perdera no ctonismo da sua alma, como emergia de uma caverna sem sombras, pensava que acontecera tal como acontecem todas as coisas no mundo, como o nascer de um bébé ou a queda de uma folha de castanheiro num ermo perdido de uma aldeia sem nome.
Deixou-se ir pela rua abaixo, embrenhado na sinfonia concertante de buzinas e conversas, sentia-se numa Damasco de outros tempos, faltando somente o almíscar e sândalo para completar todo o seu quadro de vida.

Sunday, November 05, 2006

Despertar

O seu desencarceramento começou ao abrir a porta, era a vizinha do oitavo andar, quatorze anos mais velha e, sem dúvida, uma diva de Fellini em La città delle donne. Definitivamente despertou para a realidade, não ouviu uma única palavra do que ela lhe dizia mas apercebeu-se que alguém estava à sua frente, os sinos de uma igreja próxima marcavam a hora e tudo o que lhe veio à mente foi a Carta aos Coríntios, de Paulo. Em si, no seu corpo, retinia um sino pleno de qualquer coisa... a vizinha foi-se embora, fechou a porta retirando-se para o mundo concreto dos seus pensamentos, sabia que hoje acontecera o que nunca esperara, decidiu acreditar na ilusão e pegou na boa máquina de escrever, herança única de um tio que morrera de cirrose.
Cada tecla imprimia no papel constelações de sentimento, sentia-se a escrever um livro por cada palavra e a viver a vida por frase. Já não se lembrava do que acontecera, do abrir da porta, da "bella donna", nada... lembrava-se apenas do cheiro do papel que inserira na máquina e a sua vida sempre fora assim, memórias por memórias, numa constante ataraxia que deixava qualquer vulgo mortal num desespero por tal descontracção. Sabia o que fazia quando escrevia, não era seu sentido o mundo onde respirava mas aquele que criava, o seu sentido estava aí, não no limitado espaço da mente mas num mundo pleno de ideias que concretizava em tinta e papel.
Deixou-se ir, deixou ir o jantar, deixou ir a noite e todos os desejos, deixou-se ir pelas vésperas de um sol que sempre se mantinha no mesmo lugar mas que nos cria mover. Finda a nona hora da manhã, com um toque agudo, a escrita terminou com a pontuação correcta.
Esfregou os olhos, passou a mão pelo cabelo desgrenhado e sentiu que o hoje seria diferente, que hoje iria procurar... hoje queria encontrar.

Monday, October 30, 2006

Remanhecer

Os olhos mantinham-se colados ao tecto, a sua decisão estóica de ficar na cama, durava já cinco dias. Ninguém procurou por ele, poucos se lembraram que existia e menos ainda sentiram a sua falta, parecia que o mundo jubilava no desconhecido de alguém sobre quem se escreve. Não comeu, não bebeu, apenas permaneceu num estado de crisálida para compensar os trinta e oito anos em que tudo fez e muito pensou, tudo fez porque tinha que ser feito e tudo pensou, porque pensar fora-lhe ensinado, isso e os bons costumes era regra.Passavam dez minutos das dezassete horas quando um piscar simultâneo de olhos mudou toda a realidade, afinal o mundo não se tinha livrado dele, afinal o seu corpo não entraria em choque mas cometeu um erro, desta forma não poderia comprovar o milagre da ressureição, apenas resgatou o que não tinha ainda encontrado mas por ele as multidões não se moveriam. Articulou algumas palavras que sairam secas, inaudíveis, como vento quente numa manhã marroquina. Os musculos esforçaram-se para tomar consciência que se deviam mexer e passado algum tempo, ergueu-se. Com este movimento heróico a existência reconheceu que estava pronto para a vida e como tal a campaínha tocou.

um pouco mais tarde

Deixou-se ir pelos reflexos do tejo, nas suas costas ondulavam as sombras serpentinas de uma metáfora para D. José e o arco da Augusta parecia já um espaço perdido. Via entre cada ondular do rio uma expressão de memória, o marulhar da água nas paredes de um cais de outros tempos era toque hipnótico de uma sinfonia que compreendera desde a infância.Não sentia o coração que pouco batia no corpo, nem estranhava a roupa com restos de almoço ou os ténis que entraram em comunhão com as lajes que pisavam. Não sentia, tudo nele parecia fruto de uma ataraxia ou de uma apostásia à sua condição humana.Deixou-se ir por tudo, deixou-se ir por nada, vivia o onirismo de só quem o vive o sabe e a noite passou-se, de olhos abertos e sons longíquos.

Friday, October 27, 2006

Na noite

O crepúsculo baixava sobre os seus ombros, qual manto real cobrindo o mais pobre dos pobres. Os seus olhos mantinham-se parados, absortos além, na alma da figura pétrea de D. Sebastião segurando um escudo do peso da nação. O que via nesse acto nem ele mesmo sabia pois nem sabia que o estava a fazer, o Sebastião sempre lhe trouxe algo que ele nunca compreendeu bem, tentava mas não compreendia e como em muito na vida, deixava-se ir. Já as estrelas iam pontilhando o tecto celeste quando despertou da sua bela letargia, foi roçando as solas pela rua áurea abaixo, quem o visse diria que tinha em si toda a propriedade de um lunático mas a tinta de todas as canetas o reconheciam quando se aproximava. E no Terreiro do Paço a noite foi avançando.

Thursday, October 26, 2006

um pouco mais tarde

Encontrava-se à porta do Diário de Notícias, sempre se perguntou o que faziam letras góticas num edifício do Pardal Monteiro e se no último andar do torreão faroleiro as orgias literárias e pouco mais continuariam. Pensando em orgias a sua mente bloqueou, veio-lhe um incenso de salsichas de porco envoltas em mel, um repasto de ovos de codorniz em banho de Porto e mais umas coisas estranhas que não conseguiu trazer à realidade.
Os pensamentos trouxeram incómodo ao estômago magro e hiptonicamente avançou Avenida da Liberdade abaixo, esquecendo por completo o que devia fazer no prédio do Monteiro. Os ténis gastos palmilhavam a calçada central da Avenida, pisando aqui e ali folhas caídas, era como pisar as páginas do Garrett onde, com tanto carinho, depositou o romantismo português de um outro tempo.
Já no final da da calçada, embocado no rossio, parou. Dir-se-ia um serfadita que após longa diáspora chegara a Sião. Chegara e não reconhecera. Tinha já esquecido a razão daquela súbita peregrinação. Roçou mais uns pelos arruivados e lembrou-se que no frontespício da estação do rossio lá estava D. Sebastião, imortalizado numa meninice populuscamente típica de sentimentos revivalistas.

Wednesday, October 25, 2006

de tarde

Era tarde mas ainda era dia, ou melhor, advinhava-se um sol por detrás do véu de nuvens que percorria todo o horizonte da esfera celeste. Coçou a barba que voltara a crescer, desde manhã, e entre os pequenos ruidos da sua respiração deixava-se ir num pensamento de procura. Procurava, procurava sabe-se lá o quê, ou melhor - quem!?
Possivelmente enredou na sua mente um divertimento a três tempos de uma analogia hindu, no fim de contas há sempre um prazer sardónico pelas coisas que desconhecemos e pelas vozes que ouvimos no espaço oco da nossa mente. Esboçou um sorriso pelo riso curto e infantil que escutou, algo de uma memória feminina que lhe inquinou toda a vida.
Ao lembrar esse riso notou o buraco que estava na sua camisa, era escuro, desfiado, um buraco que ia do peito às costas se por lá decidisse pôr a mão. Continuava a coçar a barba, agora um pouco maior que no tempo da primeira palavra, desligou-se da dor cardíaca e concentrou-se no aqui e agora, estava no metro, na estação errada e completamente atrasado para algo que ele sabia que devia fazer.

Tuesday, October 24, 2006

No almoço

O guardanapo permanecia religiosamente à sua direita, dobrado ao meio, branco, com depressões e elevações que a qualquer um faria pensar numa qualquer teoria de vida. Cada garfada de ovo deixava um belo rasto amarelo na camisola azul escura de uma certa marca encontrada no supermercado, no fim de contas, o semelhantes atraem-se e no conjunto das situações servem sempre para qualquer espectador os catalogar.
Não se fez de rogado e rapou o prato com o que lhe restava das batatas, fritas já há algum tempo, que de certeza prefeririam ter ido para uma panela lavada onde estariam em sauna. O prato ficou branco, resplandecente, contrastante com o ar do seu parceiro. E foi assim o almoço de um homem que se sentia um novo homem.
Um pormenor... as calças eram verdes e as meias ficaram em casa, no fim de contas, após uma hora de banho quem precisa de meias?

Thursday, October 12, 2006

Levantar

Levantou-se cedo, com o costumeiro pesar de mais um dia que vem e outro que passou, em frente ao espelho coçou os pelos ruivos e admirou o crescimento de quatro dias, tudo condizia, a profundidade de um olhar sem descanso, pele transparente e um certo carisma na sua sombra que nunca compreendeu bem.
Desfez a barba com precisão mecânica, deixando aqui e ali pequenas marcas que sempre descurou, no fim de contas o rosto era o retrato da alma. O duche veio como uma bênção, dir-se-ia que o Ganjes tinha adquirido a pureza de há mil anos e que pelas canalizações de Lisboa também nós depositavamos os nossos corpos putrefactos. Meia hora passou e a água continuava a percorrer o corpo, mais meia hora e uma mão inconscientemente fechou a torneira.
Preparava-se para vestir um fato e colocar ao de cima, a tom de perfume, a personalidade, fê-lo.
De pouco mais se poderia lembrar do seu dia-a-dia, no fim de contas era agora um novo homem.