Monday, October 30, 2006

Remanhecer

Os olhos mantinham-se colados ao tecto, a sua decisão estóica de ficar na cama, durava já cinco dias. Ninguém procurou por ele, poucos se lembraram que existia e menos ainda sentiram a sua falta, parecia que o mundo jubilava no desconhecido de alguém sobre quem se escreve. Não comeu, não bebeu, apenas permaneceu num estado de crisálida para compensar os trinta e oito anos em que tudo fez e muito pensou, tudo fez porque tinha que ser feito e tudo pensou, porque pensar fora-lhe ensinado, isso e os bons costumes era regra.Passavam dez minutos das dezassete horas quando um piscar simultâneo de olhos mudou toda a realidade, afinal o mundo não se tinha livrado dele, afinal o seu corpo não entraria em choque mas cometeu um erro, desta forma não poderia comprovar o milagre da ressureição, apenas resgatou o que não tinha ainda encontrado mas por ele as multidões não se moveriam. Articulou algumas palavras que sairam secas, inaudíveis, como vento quente numa manhã marroquina. Os musculos esforçaram-se para tomar consciência que se deviam mexer e passado algum tempo, ergueu-se. Com este movimento heróico a existência reconheceu que estava pronto para a vida e como tal a campaínha tocou.

um pouco mais tarde

Deixou-se ir pelos reflexos do tejo, nas suas costas ondulavam as sombras serpentinas de uma metáfora para D. José e o arco da Augusta parecia já um espaço perdido. Via entre cada ondular do rio uma expressão de memória, o marulhar da água nas paredes de um cais de outros tempos era toque hipnótico de uma sinfonia que compreendera desde a infância.Não sentia o coração que pouco batia no corpo, nem estranhava a roupa com restos de almoço ou os ténis que entraram em comunhão com as lajes que pisavam. Não sentia, tudo nele parecia fruto de uma ataraxia ou de uma apostásia à sua condição humana.Deixou-se ir por tudo, deixou-se ir por nada, vivia o onirismo de só quem o vive o sabe e a noite passou-se, de olhos abertos e sons longíquos.