O seu desencarceramento começou ao abrir a porta, era a vizinha do oitavo andar, quatorze anos mais velha e, sem dúvida, uma diva de Fellini em La città delle donne. Definitivamente despertou para a realidade, não ouviu uma única palavra do que ela lhe dizia mas apercebeu-se que alguém estava à sua frente, os sinos de uma igreja próxima marcavam a hora e tudo o que lhe veio à mente foi a Carta aos Coríntios, de Paulo. Em si, no seu corpo, retinia um sino pleno de qualquer coisa... a vizinha foi-se embora, fechou a porta retirando-se para o mundo concreto dos seus pensamentos, sabia que hoje acontecera o que nunca esperara, decidiu acreditar na ilusão e pegou na boa máquina de escrever, herança única de um tio que morrera de cirrose.
Cada tecla imprimia no papel constelações de sentimento, sentia-se a escrever um livro por cada palavra e a viver a vida por frase. Já não se lembrava do que acontecera, do abrir da porta, da "bella donna", nada... lembrava-se apenas do cheiro do papel que inserira na máquina e a sua vida sempre fora assim, memórias por memórias, numa constante ataraxia que deixava qualquer vulgo mortal num desespero por tal descontracção. Sabia o que fazia quando escrevia, não era seu sentido o mundo onde respirava mas aquele que criava, o seu sentido estava aí, não no limitado espaço da mente mas num mundo pleno de ideias que concretizava em tinta e papel.
Deixou-se ir, deixou ir o jantar, deixou ir a noite e todos os desejos, deixou-se ir pelas vésperas de um sol que sempre se mantinha no mesmo lugar mas que nos cria mover. Finda a nona hora da manhã, com um toque agudo, a escrita terminou com a pontuação correcta.
Esfregou os olhos, passou a mão pelo cabelo desgrenhado e sentiu que o hoje seria diferente, que hoje iria procurar... hoje queria encontrar.
Sunday, November 05, 2006
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