O duche tinha agora outro sabor e propósito, dez minutos chegaram para uma higiene completa, ao fundo um schubertiano "Im Abendrot" que preenchia o ar na voz de von Otter, tudo fazia sentido, tudo tinha uma direcção e um propósito, a gillette que suave e firmemente deslizava pelo rosto marcado não deixava qualquer golpe incauto, tudo era certeza. Pela primeira vez, desde o tempo que se lembra, vestiu o que procurou, deitou os ténis no lixo e fez-se à rua de olhar decidido. Schubert acompanhou-o na sua jornada, uma melodia que se recusara ouvir desde o dia em que perdera o diapasão do seu peito.
Agora sim, procurava, algo de etéreo que perdurava na sua mente, tal nevoeiro que deixava seus ouvidos sem ver e seus olhos sem sentir, desvaneciam-se os enganos, os falsos motivos, todos os pensamentos alheados. Aqui e ali, uma lágrima despontava e caía desprendida da posse de seu dono, tudo passava e o passado era maresia de quarto-minguante. Pensava, deixava-se pensar mas já não se lembrava como tudo acontecera, como se perdera no ctonismo da sua alma, como emergia de uma caverna sem sombras, pensava que acontecera tal como acontecem todas as coisas no mundo, como o nascer de um bébé ou a queda de uma folha de castanheiro num ermo perdido de uma aldeia sem nome.
Deixou-se ir pela rua abaixo, embrenhado na sinfonia concertante de buzinas e conversas, sentia-se numa Damasco de outros tempos, faltando somente o almíscar e sândalo para completar todo o seu quadro de vida.
Monday, November 06, 2006
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